Automedicação: perigo que está na rotina de 77% dos brasileiros.
Tomar remédios por conta própria pode mascarar, piorar ou provocar doenças e causar reações adversas às vezes muito graves
A bolsa da dentista Márcia Eid, de 51 anos, é uma minifarmácia ambulante. Tem remédio para dor de cabeça, muscular e de garganta. Há pastilha para aliviar a tosse, colírio que umidifica os olhos, medicamento contra cólica e gases. Por isso, não é incomum os amigos sempre recorrerem a ela quando alguma dor incomoda. “Nunca sabemos quando vamos precisar. Por isso, tenho remédio para tudo”, conta. Márcia integra o contingente de 77% dos brasileiros que se automedicaram nos últimos seis meses, porcentagem levantada em pesquisa recente do Conselho Federal de Farmácia. De acordo com o relatório, quase metade deles (47%) afirmou fazer isso pelo menos uma vez por mês. Trata-se de índices altíssimos e muito preocupantes. Tomar remédios por conta própria pode mascarar, piorar ou provocar doenças e causar reações adversas às vezes muito graves.
Os principais influenciadores na decisão de usar medicamentos por conta própria são familiares, amigos e vizinhos. As farmácias foram apontadas por 21% dos entrevistados como fonte de informação e indicação. “É uma questão cultural do brasileiro usar medicamento sem indicação médica. E isto está muito relacionado ao acesso aos serviços de saúde e à falta de informação”, afirma o clínico geral Frederico Polito Lomar, do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo. “A pessoa quer resolver o problema imediato, que é a dor, e não está preocupada com as possíveis consequências.”
A automedicação ocorre até mesmo depois de consultas médicas em que o profissional de saúde indica o tratamento na receita. Segundo a pesquisa, quatro em cada dez pessoas (44%) afirmam ter abandonado os medicamentos prescritos. “Alterar a dosagem, mudar os intervalos e interromper o uso antes do indicado também é automedicação e pode ser tão prejudicial para a saúde quanto escolher um medicamento para alívio imediato de uma dor sem indicação de um profissional”, afirma a farmacêutica Josélia Frade, assessora da presidência do Conselho Federal de Farmácia.
Há pelo menos uma década, a doméstica de imóveis Anelícia Cruz da Silva, de 58 anos, sofre de fibromialgia, doença caracterizada por dor generalizada. Para aliviar o sofrimento, usa anti-inflamatórios. “Às vezes tomo um comprimido. Em outras, tomo até a dor parar”, conta. “Quando a cartela está acabando, tomo meio comprimido”, diz. Assim como ela, 57% dos entrevistados já mudaram a dosagem. A maioria (37%) reduziu a dose. Quarenta por cento dos entrevistados alegaram terem diminuído a dose por acreditarem que o medicamento estava fazendo mal. Outros 32% justificaram que já estavam com a doença curada ou controlada e 17% afirmaram terem reduzido por conta própria a quantidade prescrita por causa do preço alto do medicamento.
Outro dado da pesquisa que chamou a atenção do Conselho Federal de Farmácia é que 22% dos entrevistados afirmaram ter dúvidas sobre o uso do medicamento. “Elas são principalmente referentes à dosagem, tempo de uso e contraindicações mencionadas na bula. Porém, a maioria deles não esclarece com o médico ou farmacêutico”, afirma a farmacêutica Josélia Frade, do Conselho Federal de Farmácia. “Muitas vezes os pacientes saem dos consultórios com dúvidas e não procuram esclarecê-las com o especialista, mudando ou interrompendo o tratamento.”
As bactérias resistem
Uma das mais graves consequências da automedicação é o surgimento de bactérias resistentes aos antibióticos. O uso abusivo ou incorreto das medicações, que figuram entre os mais importantes progressos da medicina, está levando ao aparecimento de microorganismos contra os quais os antibióticos disponíveis não atuam mais. Por isso, há uma corrida da ciência e das autoridades mundiais para frear a utilização inadequada dos remédios. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), pelo menos 1 milhão de pessoas morrem todos anos por infecções bacterianas provocadas por agentes infecciosos resistentes a antibióticos. Entre elas, está a tuberculose multirresistente. A estimativa da Organização das Nações Unidas (ONU) é a de que se políticas públicas de saúde não forem aplicadas, até 2050 o número de óbitos no mundo por esse motivo seja de 10 milhões ao ano. Em abril, o grupo de Coordenação sobre Resistência Antimicrobiana da ONU divulgou um relatório pedindo medidas de urgência para enfrentar esta questão. Entre os objetivos listados no documento estão: aumentar a conscientização da população sobre o assunto e promover mudanças comportamentais, prevenir infecções por meio da promoção da higiene e vacinação, aumento de pesquisas sobre a resistência antimicrobiana e redução e maior controle da prescrição destes medicamentos.
Usados para o tratamento de doenças causadas por bactérias – como pneumonia, amigdalite, tuberculose, sífilis e tétano – muitos antibióticos já não funcionam como antes. “As bactérias têm grande capacidade de mutação e adaptação. O uso repetido e, muitas vezes, desnecessário, está tornando estes organismos mais resistentes”, afirma a farmacêutica Josélia Frade, do Conselho Federal de Farmácia.
Mascaramento de doenças
Muitos medicamentos, especialmente os vendidos sem necessidade de prescrição, agem no controle dos sintomas e não das causas das doenças. É o caso antitérmicos e analgésicos, por exemplo. Por isso, quando o uso de qualquer droga se torna frequente, é importante procurar um médico. “Não é comum uma pessoa precisar tomar um anti-inflamatório ou um analgésico todos os dias e o remédio pode estar encobrindo uma doença que pode nem ter sido cogitada. Dor é um aviso do organismo para algo que precisa de atenção e se persistir é imprescindível procurar um profissional”, alerta Josélia Frade, do Conselho Federal de Farmácia.
Efeitos reduzidos
A redução do efeito dos fármacos pode variar de pessoa para pessoa e de acordo com a frequência do uso.
Reações adversas
Dados da OMS alertam que 10% das hospitalizações no mundo ocorrem por conta de reações adversas a medicamentos. A ingestão, por exemplo, de um simples comprimido para dor de cabeça pode ter consequências desagradáveis. O uso da dipirona, substância muito comum em remédios para cefaleia, é contraindicado para pessoas asmáticas por oferecer o risco de choque anafilático, uma alergia grave que ocorre minutos depois da ingestão.
Utilizado para diminuição da febre e alívio da dor e sintomas de doenças como gripe e resfriados, fármacos que têm como base o ácido acetilsalicílico (como AAS e Aspirina) não são recomendados para pacientes com lesões no estômago, pois podem causar sangramento. E é proibido em caso de suspeita de dengue. “Esta substância é um anticoagulante e seu uso em casos de dengue pode provocar ou agravar hemorragias”, alerta Frederico Polito Lomar, médico do Einstein.
“Cada medicamento é único. Cada paciente é único. O uso de qualquer remédio deve ser definido de acordo com histórico de saúde do paciente e a doença diagnosticada. É preciso avaliar se ele tem algum tipo de alergia, se faz uso de outras substâncias porque os efeitos vão variar”, afirma a Josélia Frade, do Conselho Federal de Farmácia.
Intoxicação
O uso incorreto de medicamentos é uma das principais causas de intoxicação no Brasil. Em 2017 foram registrados 6.880 casos, média de 18 internações por dia, segundo dados do Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas (Sinitox). Na maioria das vezes, ela é provocada pelo uso de remédios vendidos em farmácias sem necessidade de prescrição. Alterações na dosagem e no intervalo de uso, bem como associações com outros remédios e o álcool são as principais causas.